Rio Grande do Sul
Elas não têm medo de assumir a liderança
Conheça as histórias de quatro mulheres que seguram as rédeas de suas propriedades
Das 5,07 milhões de propriedades rurais registradas no Brasil, quase um milhão são dirigidas por mulheres. No Censo Agropecuário de 2017, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identificou 947 mil mulheres responsáveis pela gestão de propriedades rurais. Pode parecer pouco, mas representa um crescimento na presença feminina em posições de liderança no agro. Hoje elas são 18%, contra 12% em 2006.
O levantamento ainda aponta que 817 mil mulheres compartilham a direção do estabelecimento rural com o cônjuge. Cabe tanto a eles quanto a elas, buscar formação e envolver-se em todas as etapas da produção para fazer o negócio prosperar.
Março é o mês da mulher, mas o avanço do protagonismo feminino pode ser acompanhado a cada dia do ano. Aqui no Estado, há milhares delas segurando as rédeas da produção e buscando apoio técnico junto ao Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar-RS). Conversamos com quatro delas: Carmen Lúcia Trindade e Silva, Cristina Soares Ribeiro, Luciane Rafaela de Lima e Nara Fauth Pereira. Confira suas histórias:
Líder por vocação
Apesar de acumular diplomas em Letras e Psicologia, Nara Fauth Pereira dedicou 40 de seus 78 anos de vida ao campo - com “diferentes graus de envolvimento”, como ela mesmo diz. Mas desde 1997, é ela quem está à frente dos negócios da Estância Boa Vista da Quinta, empresa agropecuária formada por cinco fazendas, que somam 10,6 mil hectares de terra - três em Rio Pardo e as demais em Cacequi e São Vicente do Sul.
“Eu boto a mão na massa para valer em Rio Pardo. Em São Vicente e Cacequi, tenho um gerente e um veterinário [gerenciando] com os quais tenho contato diário, acompanho tudo o que se desenrola, mas não estou presente. Mas te diria que respiro a Estância da Quinta 24 horas por dia. Amo de paixão. Faço isso há muito tempo e não perdi o encantamento. Cada nova safra, cada novo ano, cada novo projeto, me anima, me entusiasma, me empolga”, conta Nara, que divide suas atividades administrativas entre o interior e o escritório na Capital.
A energia aparentemente infinita da empresária contou a seu favor quando ela passou a se dedicar integralmente ao agro, há 24 anos. Ela voltou à universidade e buscou o Senar para aprofundar conhecimentos que a experiência já lhe havia concedido.
“A atividade rural é muito variada. Cada dia você aprende uma coisa e nunca se sabe tudo.
Desde o início, o que eu não sei eu pergunto, vou atrás. E se eu não achar, acho o telefone de quem sabe”, diz.
O ímpeto de aprender e buscar respostas levou Nara a obter conhecimentos e conseguir assessoria para ajudar a elaborar projetos e tomar decisões que ajudaram sua empresa a entrar no século 21 sem traços de obsolescência.
“Não tenho especialização em tecnologia, mas a empresa tem um perfil moderno, não parou no tempo. Trabalhamos uma agricultura que caminha a passos largos para a alta tecnologia. Na pecuária procuramos também inovar, já que a coexistência com a agricultura era obrigatória e a gente teve de desenvolver vários sistemas para poder no mesmo espaço manter o mesmo porte da atividade que era desenvolvida”, explica a empresária rural.
Manter a Estância Boa Vista da Quinta inovadora após quatro décadas, diz Nara, exige permanente qualificação dos funcionários.
“A tecnologia avança e está a exigir que nosso pessoal avance também. Temos nos valido dos cursos que o Senar-RS promove e de treinamentos permanentes junto aos fabricantes [de máquinas]. Com isso garantimos não só o bom uso do equipamento, mas a satisfação do funcionário quanto ao seu próprio desenvolvimento”, afirma.
Outra coisa que orgulha a empresária é ter muitas mulheres em seu quadro funcional “e não só em atividades ditas domésticas".
“São competentes colaboradoras da administração. Assim como organizei, por 13 edições, o Leilão 100% Delas, que deu a visibilidade merecida ao trabalho da produtora rural, as mulheres da minha equipe são encorajadas a se revelarem seu potencial. Isso é algo de que me orgulho”, afirma.
A mulher que lidera a Paraísos
Cristina Soares Ribeiro viveu uma infância e juventude Feliz na Estância Paraísos, propriedade dos pais, Florício e Lídia Soares, em Pedras Altas, no sudoeste do Estado. Mas há 10 anos a morte do patriarca a convocou a um desafio: administrar as terras dedicadas à agricultura e pecuária e administrar a Cabanha Paraísos (ovinos Corriedale) junto da mãe e das irmãs.
“Eu tinha muito amor por aquele lugar, havia me criado lá, mas não sabia nada de administração e criação de animais. Foi aí que o Senar entrou. Fiz cursos de gestão, de ovinocultura, bovinocultura e pastagens. Ainda participei do Juntos Para Competir, a quem eternamente serei grata”, relembra.
A nova função exigiu bastante de Cristina. Casada com Fernando Schild Ribeiro e mãe de Lauro e Luiza, ela deixou a casa da família em Santa Vitória do Palmar para tomar a frente dos negócios da mãe. E mesmo na lida campeira, sempre teve coragem e vontade de aprender, nunca se acanhou.
“As pessoas acham estranho ver uma mulher na mesa de esquila, trabalhando na mangueira, tratando os animais. No entanto, para mim é uma coisa normal. Eu fui visitar a Nova Zelândia e a Austrália em missão do Senar-RS e lá a gente vê muito isso. Precisamos incentivar as meninas que elas também são capazes, basta gostar e ter interesse, Precisamos ser destemidas”, ensina.
E foi com essa força, fé e coragem que Cristina deu o mais recente passo em sua carreira como empresária rural, há 10 anos. Após frequentes ataques de cães ao rebanho de ovelhas, causando a morte de mais de 100 cabeças em um ano, a família cogitou acabar com a criação em Pedras Altas. Apegada à produção de ovinos Corriedale, iniciada pelo avô, há 70 anos, e continuada por seu pai, a empresária decidiu manter a Cabanha Paraísos. Dessa vez, no município de Santa Vitória do Palmar junto com o esposo, seu maior incentivador.
“Na hora que eu tive esse problema com ataques de cães, ele foi também meu braço direito para dizer: ‘Volta’. Voltei para casa, mas não sozinha. Voltei com as minhas ovelhas”, comenta, acrescentando que a Estância Paraíso ficou aos cuidados do sobrinho, Gabriel Soares Bonini.
A Cabanha Paraísos, apesar de jovem, já nasce com a marca da tradição familiar e da qualidade genética que lhe rendeu prêmios e excelente reputação. Cristina diz que essa vantagem facilitou sua circulação no meio empresarial, mas não impediu de enfrentar resistências.
“Ainda há pessoas que não acreditam na capacidade da mulher em administrar, gerenciar, cuidar de uma propriedade. Acho que com conhecimento, organização e vontade de trabalhar não há diferença”, afirma a empresária, que entre outros cargos diretivos, hoje integra a Comissão de Ovinos da Farsul e a diretoria da Associação Brasileira de Criadores de Corriedale e Associação Brasileira de Criadores de Ovinos (Arco).
Uma jovem cheia de força e sonhos
Luciane Rafaela de Lima, 30 anos, nasceu na roça mas passou a infância e a adolescência sem pegar no cabo da enxada - a menos que fosse para brincar. Foi só depois de trocar a rural Alegria por Três de Maio, no Norte do Estado, que o destino levou o amor e o campo até ela.
Há cerca de dez anos, trabalhando como comerciária, conheceu e apaixonou-se por Joel Rossi, um produtor de leite. Dois anos depois, uniram-se e Luciane mudou-se para a propriedade rural dos sogros, na localidade de Medianeira. Lá integrou-se à força de trabalho da agricultura familiar, onde cada braço conta no que se planta e no que se colhe.
“O início não foi fácil. Eu era fraquinha e o trabalho era bastante pesado. Hoje, depois de oito anos, estou cheia de calos, tenho músculos.Tudo o que envolve o trabalho ‘lá fora’, geralmente tem a minha participação”, conta.
O dia da agricultora geralmente começa às 4h45. A primeira missão é preparar o material para a ordenha enquanto Joel busca as vacas,e o sogro lida com as terneiras. Os filhos do casal, uma menina de 3 anos e um menino de 7, ficam com a avó.A lida com as reses é concluída por volta das 7h30, quando o trio finalmente pode tomar o café da manhã.
Mas o trabalho está longe de acabar. Na propriedade de 25 hectares, os Rossi plantam milho para silagem e pastagem para as vacas. Luciane divide com os homens todas as obrigações.
“Depois do café, eu cuido das crianças. Faço serviço de casa, se posso ficar. Se tiver que plantar eu planto, se precisar fazer cerca, faço cerca”, enumera Luciani.
O trabalho em equipe rende frutos. Luciani tem orgulho de contar que do rebanho de 65 cabeças, 32 leiteiras que produzem, em média, 800 litros por dia. E esse resultado ele atribui ao conhecimento adquirido em cursos feitos juntos ao Senar-RS, como o de Manejo de Terneiras e Novilhas, e ao Programa de Produção Integrada em Sistemas Agropecuários (Pisa), desenvolvido no Estado pelo Programa Juntos para Competir, parceria entre Farsul, Senar-RS e Sebrae RS.
“Sempre tivemos uma produtividade muito boa, mas sobrava pouco dinheiro. O Pisa nos mostrou como diminuir os nossos custos e ver que a produção de leite dava lucro. Eu fui conhecer uma experiência diferente em outro município e voltei contando para o Joel. Nós tínhamos um manejo completamente diferente, mas a gente estava com fome de mudar e só crescemos com isso”, relata Luciani.
A produtora rural faz planos de expandir o negócio. Um deles é construir um galinheiro e vender ovos caipiras. Ela também planeja revitalizar a propriedade.
“Eu nos vejo trabalhando com nossos filhos aqui no futuro. Quero que eles fiquem aqui conosco e a estrutura que temos é do tempo do meu sogro. Teremos novas instalações, que supram as necessidades deles. Vou trabalhar sem parar para isso”, promete.
Sempre na lida
“Hoje, a mulher é livre para ser o que ela quer ser. Arquitetura, médica, advogada e produtora rural. Por que não?”, pergunta Carmen Lúcia Trindade e Silva, 62 anos.
Opções não faltaram para Carmen, que administra a Fazenda do Salso, em Plano Alto, Uruguaiana, há mais de 20 anos. Arquiteta por formação e mãe de dois filhos, viveu parte da sua vida entre a tranquilidade dos campos do Alegrete e Uruguaiana e a agitação de Porto Alegre e São Paulo. Foi após a morte da mãe, dona Tereza, que o chamado do campo falou mais alto.
“Na primeira infância, eu sonhava em morar na fazenda. Sempre amei o ciclo da natureza, ver as plantas crescerem, observar os animais. Recusei propostas de trabalho para vir para cá. Claro, foi difícil no início. Há 20 anos, uma mulher vir trabalhar no campo sem ser veterinária, agrônoma, sem conhecimento técnico do meio. Havia muita desconfiança”, lembra.
Para vencer o descrédito, Carmen esforçou-se para aprender o que fosse possível para tocar e fazer crescer a propriedade, dedicada à pecuária de corte e à ovinocultura.
“Fiz muitos cursos do Senar-RS e ainda faço. Faço parte da Assistência Técnica e Gerencial do Senar (ATeG) e do Juntos para Competir. Minha evolução no trabalho tem muito a ver com os cursos de que participei”, diz.
E que evolução. Uma vez na fazenda, não espere ociosidade de Carmen. Procure-a no campo, sobre o lombo de um cavalo, na lida.
“Meu dia começa com uma conversa com o funcionário. Decidimos o serviço que é preciso fazer. Vamos olhar o gado, ver se tem que fazer algum tratamento, se pasto está bom. Ai, junto o gado, coloco nas mangueiras... Agora desacelerei um pouco, pois com 62 anos o corpo vai ficando limitado. Eu lamento porque adoro estar envolvida no serviço, mas hoje eu já canso mais rápido. Antes eu passava o dia todo fazendo isso”, relata a pecuarista.
Na propriedade, ninguém mais se espanta se Carmen se integra aos trabalhos da esquila ou faz o parto das ovelhas. Ela conquistou o respeito, a confiança e a admiração dos subordinados com o trabalho. O mesmo ocorre no meio empresarial rural, onde ela vê o crescimento do número de mulheres em posições de liderança.
“Tem muitas produtoras no Alegrete, mulheres que, anos atrás, talvez não tivessem coragem de tomar pé de seu negócio. Sempre incentivo minhas amigas a fazer cursos, a estarem organizadas, a lutarem por seus interesses. Na minha história pessoal, sempre me inclui pelo conhecimento. Quando você sabe se posicionar, tem opinião, as pessoas te ouvem. O meio rural ainda é machista, mas muito menos que no passado”, diz.
Uma grande inspiração para Carmen foi a trajetória da mãe. Tereza Trindade e Silva ficou viúva aos 38 anos de idade, ficando sob sua responsabilidade a propriedade e quatro filhos pequenos. Ela deu conta de tudo.
“Quando meu pai era vivo, ela já fazia a contabilidade da fazenda. Quando ele faleceu, ela contratou um veterinário e passou a administrar a propriedade. Ela era uma mulher que vinha para fora sozinha, dirigia, ia a shows, ia ao teatro. Naquela época, mulheres não saiam sozinhas. Foi uma mulher à frente de seu tempo”, afirma.